terça-feira, dezembro 19, 2006

talvez um gesto

desfizesse o enigma do teu rosto
mas meus olhos são setas claras e duras,
e os teus, entre feridos e culpados,
me encaram

na paralisia em que hesito
há lábios que se crispam
sobrancelhas contraídas
mas mãos abertas e alheias

não desfaço minha face, nem a tua,
e no silêncio de um instante
sequer balbucios entre nós dois

até lembrarmos dos olhos,
estes imunes ao silêncio,
a brisa sopra
entre paralelos e estáticos
nos derrubando lentamente,
dois retratos

quinta-feira, dezembro 14, 2006

para abrir depois do portão - velha versão

Esse foi um poema que perdi várias e várias vezes; toda vez que tentava registrar, ou o papel sumia, ou o pc dava pane, ou caía um raio na minha cabeça, etc, enfim. O fato é que certo dia acabei reconstruindo o poema em verso, pela memória, direto aqui no blog. Fiquei satisfeito com o resultado na hora, mas depois nem tanto. Pois hoje achei a versão em prosa que tinha escrito há um tempo atrás, e qual não é minha surpresa que ela me parece bem melhor do que a versão versificada que fiz depois. Minha primeira tentativa de prosa poética, confiram aí ;)



para abrir depois do portão



aquilino e diagonal, atravesso o retrato da árvore pintado na janela do carro. paro, aprecio, até que olhares em alarme me coajam. sigo. tropeço sobre a sombra dos pássaros parados na lâmina do meio-fio. mais tempo perdido, sigo. me assombro com a passagem rápida dos carros, enquanto me equilibro nas pedras tortas do canteiro. sigo. no percurso, uma pausa para pensamentos, se não fosse o assédio da cidade, que torna-se turba no vão da pista. algazarra, silencio. sofro a coação da parada. o reflexo tremido, nervoso, do espelho do ônibus. me vejo passando feroz como a paisagem
ao puxar do fio, o pensamento se desata. mas não sem antes me escrever um bilhete, que engarrafado, jogo para que bóie no concreto e asfalto. e sigo.

para abrir depois do portão.

domingo, dezembro 10, 2006

eita eita eita

''Vá ao pinheiral se você quer aprender sobre pinheiros, ou ao bambuzal, se você quer aprender sobre bambus. Fazendo isso, você tem que deixar de lado essa preocupação excessiva consigo mesmo. Senão você só se impõe no objeto e não aprende. Sua poesia emana do seu íntimo quando você e o objeto se tornam um. Quando você, enfim, vai fundo o suficiente para ver uma espécie de brilho escondido ali. Por mais bem fraseada que sua poesia possa ser, se seu sentimento não é natural, se você e o objeto estão separados, então sua poesia não é verdadeira poesia, mas só uma mera falsificação subjetiva.'' Matsuo Bashô



Interessante como mesmo falando sobre a necessidade de se apropriar dos objetos, sair do umbigo, Bashô reforça a importância do subjetivo, do eu. Não há expressão que não seja extremamente vinculada, irrevogavelmente, aliás, ao seu próprio modo de ser, seus interesses, sua subjetividade. Mas para não se encerrar nisso, já que a arte é algo socialmente inscrito, é preciso exercitar o apropriamente de outro eu, ou de partes do próprio eu que às vezes é deixado de lado. Estou escrevendo um conto há um bom tempo, e estou tentando me apropriar disso... Talvez quando eu publicar pensem que o que escrevo não tenha nada à ver comigo, que está algo por demais frio, mas isso seria apenas uma visão imediatista das coisas. Nem só de lágrimas vivem as emoções.
*editado: corrigi o ''senão'', que tava separado na citação.
Aproveito ainda pra falar de onde tirei a citação, trata-se da abertura de uma parte do livro Polivox, ''Satori Uso'', do poeta Rodrigo Garcia Lopes(eita nome!). Gostando muito das coisas dele, essa seção que é aberta pela citação é só de hai cais escritos verticalmente, como se fosse grafia japonesa, só que em português. O interessante é que, além de ser referência à origem do hai cai, a leitura vertical é mais lenta, o que é propicio ao clima do hai cai. Descobri inclusive que usei um dos peomas(sem título) como mote pra ''gato preto sobre gato preto'', poema que eu publiquei um tempo aqui atrás, sabendo que já tinha ouvido essa expressão, mas sem saber onde.
Reproduzo-lhe aqui:
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terça-feira, dezembro 05, 2006

para abrir depois do portão

aquilino e cruel, transversal
atravesso os espaços que me separam do meu destino quotidiano
tropeço na sombra dos pássaros sobre o meio-fio

me levanto
e me espanto
com o retrato da árvore refletida na tela da jenela de um carro qualquer
olhares de vigilância incidem sobre mim, e fujo, coagido

mais diagonal do que nunca
percorrro os fios ao bater de cílios
me abismo ilhado entre dois tráfegos, e equilibro
a mim mesmo sobre fluxos opostos

sigo

sofro o assédio da cidade,
a turba presa no espaço entre a calçada e a pista
o baque surdo no vidro
e elogios pouco cordiais
o fremido dos freios dos carros
o som da cidade em frequente cio
do macho que toma à fêmea à força(a borracha e o asfalto)

mas sigo

o meu reflexo treme febril no espelho do ônibus,
imagens que passam indistintas, ainda que não tão velozes
formando um novo abismo
mas já é o fim da linha
e o pensamento se desata
ao meu puxar do fio

e sigo

naufragado entre concreto e asfalto
mas não sem antes me escrever um bilhete
para abrir ao fechar do próximo portão