terça-feira, janeiro 09, 2007

Retratos

E de repente olhou
e realmente não era

Os retratos todos enfileirados dispostos com certa disciplicência pela parede alta e ampla do cômodo de estudos. Dos mais variados tipos e tamanhos, passeando de Rembrandt a Edward Hopper, todos quadros que lhe pintara. Tantos quadros que talvez deixassem qualquer um tonto. Mas não era esse o motivo pelo qual se encontrava agora trôpega: era pela descoberta.

Descoberta não, se recompôs, constatação. Constatação porque estavam ali o tempo todo, e ao mesmo tempo não era exatamente agora que notara... Há muito já havia percebido, aliás, desde o começo, perceberá mas não entendera, ou não quisera. Tão talentoso. Mas agora sim. Sem esforço nenhum e com total surpresa, entendera. Todos aqueles retratos ali, pela parede, seus retratos que adorava tanto, cada um uma lembrança... não eram realmente ela. Não era.

E foi nesse instante que sentiu tudo girar, e ela realmente girava, os olhos trôpegos cavalgando de quadro a quadro; não pelos próximos de um a um, mas aos pulos, de cima à baixo, diagonal e por todos os lados. Queria abarcar logo todos, e o fazia com fúria de ansiedade. Em algum deles deveria estar a chave para decifrar aquele mistério.

E de repente naquela busca se deparava novamente com sua imagem, parecia realmente ela. E não era. Tão parecida mas faltava alguma coisa, detalhe ínfimo que fosse. O detalhe existia, aliás, pensou, e era outra.

Não burra, não era tonta, como poderia não ter percebido por tantos e tantos retratos recebidos? Quadro à quadro os revisava, se reconhecia e estranhava. Aquela feição não era a sua, talvez o rosto sim, as bochechas rosadas e meio cheias, os cabelos bem lisos escorrendo aos lados do rosto, os olhos pequenos e ligeiramente fechados. Mas aquele sorriso lívido, aquela melancolia leve, com certeza não eram dela. Importara de outro alguém.
Mas ora, que besteira, não seria possível retratação tão fiel que não deixasse imperfeição. Mas não era questão de incoerência, sentiu, nem defeito. O que estava ali estava com perfeição e se não era ela, era outra. Ou outro.
Tudo lá, tão perfeito, começando pelo nariz, tão reto, pequeno, comum... tão comum que poderia ser o de qualquer pessoa. Talvez fosse isso, o nariz. Por aquele nariz se escapava o retrato de si. Qualquer um poderia caber naquele retrato, entrando pelo nariz.
Paranóia? Se fosse não se questionaria, como era possível, uma simples... Sou eu, é claro, que tolice. Bem se vê que houve esforço. Ora, que tola. Deselegância... Inveja, talvez. E agora via que tola era ela. Só quando sozinha e distraída o suficiente olhara de relance a parede e começou a pensar... E se... Mas como? E de repente já era tão certo e agora tão óbvio, mas não fazia o menor sentido. Talvez falta de habilidade... Não, não poderia, pois ao deixar de se reconhecer agora reconhecia outra coisa, que não sabia o quê, mas não ela.

E ela que sempre sentira aqueles quadros tão deles, presente por presente, o jeito dele de ver o mundo e não só isso, a maneira como gostaria de sê-lo, e lhe pintara assim. O que havia de errado não sabia ainda diagnosticar, mas sabia. Talvez um glamour ou mesmo um peso que não era dela, mas bem que gostaria. E os quadros, sempre notara, cada um mais diferente que o outro, mais lívida, impressionista, romântica, fugaz, linda. Às vezes desenhos rápidos feitos à lápis e papel numa tarde na casa de amigos ou piquenique; estes menos parecidos, mas enquadrados e guardados com tanto carinho.
Quem sabe mais relaxado ou em intimidade comigo, entre momentos de gozo, ele deixasse escapar esse outro, esse outro que parece desejar tanto quanto a mim. Agora tinha certeza, era outro, e não outra; era homem e lhe olhava. E de repente se assustou, e tapou a boca e caiu. Caiu desengonçada, mas leve, dobrada sobre os próprios joelhos. passou a mão sobre a testa, era frio e pensou, mas já sem nenhuma ansiedade.

E ao deixar de mirar a vertigem da parede, as coisas começaram a fazer mais sentido. Pensou em como vez por outra achara que superestimara a sua habilidade, em um prenúncio de estranhamento dentro da imensa alegria de recebê-los. Mas preferira acreditar que eram a maneira como lhe via, e por muito não pensava nisso. Talvez falta de habilidade, mas isso não suportava. Se tentava há pouco acreditar que sim, agora sabia que não, habilidade não faltava, e estava claro. Provavelmente não pra ele, mas pra ela, tinha certeza e via agora: era outro.

2 comentários:

Pedro Nakasu disse...

ela são eles, eles são ela, ela é ele ou ele é ela? o.o
puf!

Pedro Nakasu disse...

você não foi o único a falar do funk, essa música distorceu a beleza dessa frase, ficou estereotipada, como outro título de poema meu "a ferro e a fogo", todos falam da música do Zezé de Camargo & Luciano!