domingo, outubro 29, 2006

Oh Marinheiro

Essa é a segunda versão do conto ''Oh Marinheiro''. A primeira saiu no zine ''Canhotos n#3'', que eu faço e organizo junto com um grupo de amigos da facul. Resolvi fazer essa segunda versão por ter ficado bastante insatisfeito com a primeira. Peço desculpas àqueles que já estão com o exemplar em mãos pelos erros, mas aqui tentei corrigí-los e melhorar o texto de forma geral. A estrutura permanece a mesma, apenas corrigi e fiz algumas alterações, inserindo e retirando algumas coisas. Não tenho costume de escrever contos, sou bastante imaturo quando se trata de prosa, mas aqui está a minha última e esforçada tentativa. Críticas muito bem-vindas, por favor, como disse no post anterior. Ah, o desenho abaixo é do Diogo Braga, via ferramenta ''manuscrito'' do msn. Achei que ficou muito boa pro contexto, obrigado!








O dedão do pé saltando fora do píer. A garota à espera do seu amado para vê-lo despontar no horizonte, do alto da proa, com seu corpo inclinado sobre a mesma, os cotovelos apoiados no parapeito e o cigarro quase esquecido, jogando cinzas no mar. Era sempre assim que chegava, a brisa soprando forte, enovelando os cabelos dela pelo ar, ao redor apenas o vento assoviando às suas costas. E ela ereta, imóvel, sobre a fina tábua de madeira, planando. À frente, somente o gargarejar forte das ondas do mar.


E o chamaria de azul, se nessa história coubessem alguns tons a mais de lirismo poético. Mas não, aquele mar era o mar de todo e dia e pronto. O mesmo mar que espiava pela janela, todos os dias, nos intervalos do trabalho e da rotina. Só não era o mesmo que à tardinha, quando o sol se pondo no horizonte era sempre novo, e bonito, e a coisa mais linda que. Nessa hora do dia não se contentava somente em esperar na janela ou pela rotina, e sempre corria até ver de tão perto quanto podia a luz escorrendo pela água, seus olhos deslizando de margem a margem. E o mar então não parecia tão terrível; porque o mar quase sempre o era, não um azul, como já disse, mas uma força. Força essa que tragava e cuspia seu amado em soluços violentos e desritimados. Mas não, nada disso, ali o mar parecia apenas bonito e belo e bom, o mar.


E a despeito do descompasso de suas passagens, o marinheiro começava a demorar cada vez mais na Cidade Portuária; alongavam-se seus passeios com a menina, das duas quadras da feira à casa dela, quando educado a ajudou com as compras, até a orla inteira de mãos balançando lado a lado, ele e a menina. Menina, sim, pouco mais nova, dois anos na verdade, mas o fato é que o consenso na cidadezinha era que ele era um rapaz e ela uma menina. O que não impediu que certo dia ela olhasse fundo com os olhos azuis nos olhos dele; ele falava de coisas que havia além do mar, qualquer bobagem como um tipo de teto diferente nas casas, e ela achava realmente pequeno, improvável, mas tão bonito que ele era mesmo muito sensível de reparar. E foi perdida pensando nisso que mirou firme seus olhos, e demorou pra perceber que pedia um beijo, sorte dela que ele também isso não esperava, não agora, assim, vindo dela. Perceberam quase na mesma hora, e ela se desfez toda em rubor, olhou pro horizonte como se algo lhe impressionasse, concentrada. E ele tentou reatar o olhar, se aproximar dela, mas ela já havia se fechado em recato. Já estava feito o pedido, entretanto; ela havia sentido, e decorou: um arrepio do cóccix até o pescoço. E o vento passava levantando seus cabelos.


Depois disso ele foi embora, como sempre fazia. Agora, no entanto, pra ela que normalmente não se importava tanto, era como se partisse pela primeira vez. As outras vezes haviam sido até tranqüilas, ao vê-lo partindo já sentia antecipadamente o gosto da sua volta, mais forte e bom do que antes de partir. Dessa vez, porém, sentiu um pouco a partida, como se a cada retorno ele voltasse menos e ela também. A cada dia que passava se regava de possibilidades, de passeios e palavras. Não, não era ela, fora ele quem regara: o toque no ombro quando avisou que havia prendido a saia no prego do píer, a mão na cintura ajudando-lhe a subir a escada. Foram todas promessas, ela sentiu. Mas três meses se foram; ela agora transbordava e sentia-o escorrer pelas bordas. As cartas que mandara? Voltavam. Ao recebê-las, relia-as cuidadosamente, como se tivesse enviado a si mesma e não soubesse o que nelas havia, rememorava suas lembranças e as sentia crescendo, como se fossem novas e acontecessem agora e de novo e sempre... E ele não chegasse nunca...


Mas como sempre, quando foi um belo dia, voltou. Digo, passou, era impossível voltar, nunca esteve. E ela sentia isso, tanta raiva que... Não importava, não ainda. Não mais, voltando ou passando, ele chegara. Trouxe uma rosa murcha e um botão de rosa feito broche; foi o gesto mais bonito do mundo. Uma rosa de lá do outro lado do mar: rosa azul, mas não de especial que fosse, era um azul de murcho, de ter viajado toda aquela maresia até ali. De qualquer forma, uma rosa de um lugar outro, ela que quase não ligava pras rosas daqui. O lugar de onde ela vinha, nem imaginar ela conseguia, era um lugar diferente, ela sabia, mas o via como sua cidade acrescida de um borrão de neblina, que ela sentia diferente. Talvez por isso a rosa fosse presente tão bonito. E junto veio um pedido, namorariam. E ele se foi.


Mas já não era ela tão sozinha, tinha uma coisa ao menos: era uma namorada. E um bom tempo se passa. Ela não saberia dizer quanto, pra cidade é muito tempo e pra ela mais ainda. Nesse intervalo, o flerte de vários rapazes, alguns deles tão ou mais bonitos que o marinheiro; atenciosos, mais educados até, achava. Nenhum, porém, tinha aquele cheiro de além-mar, nem aquele gosto de neblina.


Passou-se mais muito tempo, os rapazes continuavam aparecendo, elas os rejeitando paciente, até que os cortejos começaram a diminuir... Aos poucos, mesmo se desfazendo das investidas com toda a polidez possível, começou a ser vista com ressalvas. De qualquer forma vez por outra os flertes ainda aconteciam, na cidade já era considerada por todos quase como solteira, embora ela mesma se sentisse mais para quase como viúva. Não sentia-se livre, nem compromissada com algo presente, era uma dor do que acabou sem se perceber antes do acabar. E quando já quase não podia mais, ele voltou; sem o mesmo frescor da barba sempre aparada, naquele queixo impiedoso havia agora uma barba rala, e abaixo dos olhos, pequenas bolsas de olheiras começavam a aparecer. Cansado de tanto trabalho, pensou ela, já estava na hora de casar, cuidar direito do seu homem. E foi aí, ali mesmo no porto, que ele falou em noivado, de inesperado e excitadamente. Incrível como ficava feliz cada vez que voltava e lhe encontrava à sua espera no píer.


Não que fosse do tipo frívolo, pelo contrário, mais contido e auto-centrado não poderia. Seu sorriso não era aberto, mas de canto e de olhar arguto; quando demonstrava alegria quase sempre o fazia como se estivesse sozinho regozijando-se. Mas quando falava, há quão junto eles parecia estar! Não ela só, aliás, mas toda gente, conduzidos assim pelo seu ritmo, arfante. Daquela vez, porém, logo depois do pedido, de súbito entristeceu. Ficou cabisbaixo, falou à meia voz que não podia, não podia casar tão logo; precisava do ordenado da Marinha para sustentar a mãe doente. E aquela tristeza era tão estranha e tão pouco triste, que ela ficou confusa, titubeava; não sabia se era mentira, pois sequer havia o visto triste até então. Aquela tristeza que não tocava o chão, no entanto, era o que de mais próximo e humano ele já tinha apresentado. Ficou impressionada com isso, e lhe amou ainda mais; soube suportar a dor e disse que compreendia.


Começava a aprender a amar, ela sentiu. E com isso a tristeza se transformou em enorme alegria e a partida novamente quase não doeu. Ah, só esqueço de dizer, e é importante, ele deixara agora também outra coisa: era noiva! Não mais só, não mais namorada, ela agora tinha algo ainda mais precioso: um anel. Disse que não poderia casar agora, mas que ficava o compromisso, e lhe fez noiva, para desenlaçar de vez seu novelo de pensamentos. E fez até que os cabelos ao vento dessa vez permanecessem desembaraçados no porto, esperando. Não sei por quanto tempo, mas o texto termina, porque a espera dela não cabe em canto nenhum: não cabe aqui, não cabe nela.


sábado, outubro 28, 2006

sinto muito, falo pouco, ouço tudo que não se diz 2

Veio por meio desse, pedir encaricidamente que me batam, me pisam, cuspam e depois passem por cima. Quem escreve é mesmo muito desavergonhado, como quem levanta a saia no meio da freira: o prazer é de voyerismo sem vergonha mesmo. Por isso pisem, pisotiem, passem a mão: é pra isso que estamos aqui.

Escrever é uma necessidade e não um dom; escrever eu não sei, mas eu preciso. E quando digo não sei não é por humildade nem nada, mas porque não é sem muito esforço que eu consigo chegar perto de dizer o que queria, quase sempre não consigo. Aliás, conseguir não; tanger. E literatura não é biografismo por mais que seja feito de sangue e suor(mais suor do que se pensa, na verdade, e não de alma, sangue mesmo). Entre o eu e o escritor tem pelo menos o tal do lírico, e ninguém é lírico de verdade, é sempre uma invenção, nem que seja de si mesmo, ou, principalmente, de si mesmo.

Por isso não tenham pudor de dizer não entendi, achei confuso, não tá bom, esqueça, não escreva nunca mais, por favor! Porque eu vou continuar a escrever de qualquer forma, se deus quiser e ele há de querer cada vez menos insatisfeito, apesar de saber que satisfeito mesom eu nunca vou ficar. Nunca me convenço com elogios mesmo, mais garantido pra credibilidade de vocês que me desçam a lenha. Com carinho, claro, mas sem muita frescura.

E obrigado a todo mundo que lê, comenta, ou lê sem comentar mesmo, são todos muito bem vindos, sempre.

sexta-feira, outubro 20, 2006

por cima dos fios

ao bater de cílios
por cima dos fios
sobre a calçada,
pista casa gato muro chão

o fluxo contínuo interrompido
nós amarrados a cada poste,

pairando
paralelos
panorâmicos

sobre a textura dos dias,
asfalto
e lá embaixo
escorrendo
pelos vãos
e
dobras do cotidiano, esquinas,
meninas do sinal diruno,
saltimbancos do sinal de trânsito,
equilibristas do meio-fio, em abismo
ou garotas nas ruas escuras do centro,

nós, perpendicularmente isentos;
película do insulfilme,
cacos de vidro sobre o muro
e o tudo bem tudo bom
nos acenos de calçadas
opostas

quinta-feira, outubro 19, 2006

segunda-feira, outubro 09, 2006

das coisas que são

O papel brilhante rasgado
a caixa de papel exposta em pedaços
dentro, um brinquedo?
não
um mundo novo de cores e sensação


o dia é claro
a luz amarela atravessa a película azul
e transita entre o brilho e o opaco do cinza da mobília
os lençois retorcidos, a roupa de cama um pouco fora do lugar
um espasmo de preguiça,
as pernas cavalgam até a pia


o tubo em forma de foguete
o violeta fluido da sua textura
seu brilho ascendente
passar a pasta na escova... higiene

não, um mergulho no mar da televisão
de jet ski, lancha e água cristalina
um paraíso, sem medo do fundo ou de tubarão


uma tarde que desliza enquanto o sol não se põe
e a ansiedade morna aconchega
prometendo um tipo agora vago de entusiasmo
uma tarde na casa do primo com primos
uma promessa de caminho fácil
para algum lugar que fazia falta

e tanto e de novo e insistentemente
até a exaustão do encantar-se
aquele encanto se oferecia
tão doce que não roça a língua
e macio até o ponto que aos dedos não fizesse pressão


saudade do tempo em que me refestelava com menos que uma epifania...
agora me falta perícia pra administrar as coisas que sou com as coisas que são.